Leia a entrevista exclusiva com o psicólogo Mateus Córdova de Souza sobre a campanha Setembro Amarelo e a importância dos cuidados com a saúde mental na adolescência.
Você já se perguntou por que falamos tanto sobre saúde física e tão pouco sobre saúde mental? Especialmente quando se trata da adolescência, um período da vida marcado por tantas transformações e desafios, a campanha Setembro Amarelo nos convida para um diálogo aberto e honesto sobre esse tema tão delicado.
Nesta entrevista exclusiva, o psicólogo Mateus Córdova de Souza oferece a sua percepção sobre a importância da prevenção do suicídio, os desafios enfrentados pelos jovens e como podemos ajudar aqueles que estão sofrendo.
Por meio de dados científicos e experiências clínicas, o especialista desmistifica mitos comuns sobre o suicídio, oferece orientações práticas para identificar sinais de alerta e destaca a importância do apoio profissional.
Ao longo desta conversa, você vai encontrar ferramentas para cuidar da sua saúde mental, identificar os sinais de sofrimento em seus amigos e familiares, e saber como agir diante de uma situação de crise. Aproveite a leitura!
Entrevista sobre a campanha Setembro Amarelo
A taxa de suicídio entre jovens cresceu 6% ao ano no Brasil entre os anos de 2011 e 2022. Já as taxas de notificações por autolesões na faixa etária de 10 a 24 aumentaram 29% a cada ano nesse mesmo período. O número foi maior do que na população em geral neste mesmo período.
Esses resultados foram encontrados na análise de um conjunto de quase 1 milhão de dados, divulgados em um estudo publicado na The Lancet Regional Health – Americas, desenvolvido pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia), em colaboração com pesquisadores de Harvard.
A pesquisa também avaliou dentro desse período os números de suicídios e autolesões em relação a raça e etnia no país. Enquanto há um aumento anual das taxas de notificação por essas lesões autoprovocadas em todas as categorias analisadas – indígenas, pardos, descendentes de asiáticos, negros e brancos – o número de notificações é maior entre a população indígena, com mais de 100 casos a cada 100 mil pessoas.
O acesso a estes dados ainda é um problema no mundo todo, seja por estigma ou questões legais. A que você atribui esse receio de falar sobre o assunto e qual a importância da campanha Setembro Amarelo ao trazer à tona essa temática?
Mateus Córdova de Souza: Existe uma hipótese no campo das ciências humanas e da saúde segundo a qual falar sobre o suicídio despertaria o comportamento de imitação. Ou seja, que divulgar informação a respeito desse tema poderia influenciar as pessoas a cometerem suicídio imitando outras pessoas.
Esta hipótese não pode ser ignorada, pois cada caso é um caso. No entanto, também sabemos que o suicídio não se estabelece numa relação direta. Na verdade, ele é multifatorial, havendo determinantes históricos, geográficos, biográficos, culturais e inconscientes que precisam ser considerados ao avaliar um quadro clínico.
Por exemplo, o estudo mencionado revela que a população indígena carrega uma taxa alta de suicídio, e podemos inferir que está mais vulnerável porque no Brasil é uma população altamente oprimida historicamente. Os indicadores também apontam para o difícil acesso aos hospitais nesta população, o que torna as tentativas de suicídio mais letais.
Percebemos aí circunstâncias que circunscrevem o sujeito em sofrimento, pois este sofrimento não está descolado do mundo em que ele vive. Depende de acesso a médicos, psicólogos e hospitais. Depende também do reconhecimento de sua existência e da história do seu povo.
Portanto, não há como afirmar que o acesso à informação e a divulgação dos dados sobre suicídio esteja necessariamente relacionado ao aumento das taxas, mas este é um argumento que freia a circulação do debate sobre este tema. Aí a forma como o tema será abordado importa muito, pois a intenção ao falar de suicídio é oferecer cuidado.
Quando o tema vira assunto para uma pessoa despreparada, corre-se o risco de culpabilizar a vítima do suicídio ou de agravar o quadro de alguém em sofrimento. Mas a ideia de campanhas como o Setembro Amarelo é justamente evitar que isto aconteça, informando às pessoas como proceder ao se depararem com este tema ou experienciarem um sofrimento que as inflija ideação ou tentativa de suicídio.
Saiba mais sobre o Setembro Amarelo: guia sobre a campanha e sua importância
O ambiente escolar é um campo fértil para a prática do bullying (hoje agravado pelo cyberbullying) e, atrelado às pressões da própria rotina dos estudantes (especialmente para aqueles que se preparam para Enem e vestibulares), quais as práticas mais indicadas para lidar com esses problemas?
Mateus Córdova de Souza: O bullying é caracterizado por agressões ou intimidações frequentes e sistemáticas que expõem uma ou mais pessoas. A melhor estratégia para lidar com este fenômeno é a prevenção, e isso demanda esforços da escola para criar ações coletivas, que abranjam o contingente escolar de maneira ampliada.
Uma ideia é capacitar toda a equipe escolar, incluindo profissionais de limpeza, zeladores, secretárias e professores, para identificar sinais de que um estudante está em risco e saber como proceder, priorizando a proteção da vítima.
No entanto, pode ser que a necessidade de tratar do bullying apareça depois de identificar um caso que já está ocorrendo. Nessa situação, acolher os casos individualmente é importante.
Mas também é legal atravessar a fase “pronto-socorro”, dos casos urgentes, e avançar para a fase da prevenção. Isto pode se dar ao incluir ações como palestras, cursos, peças de teatro e livros sobre o bullying no calendário escolar, com frequência semestral ou anual. Convidar especialistas de fora da instituição pode surtir bons efeitos, e criar ações que envolvam tanto as famílias quanto os estudantes é fundamental.
Já o cyberbullying se diferencia por ocorrer na internet e pode estar (ou não) relacionado à escola. Crianças e adolescentes que têm acesso à internet desassistidos de adultos tornam-se mais vulneráveis, podendo ser vítimas de chantagens, ameaças e difamações sistemáticas.
Mesmo que as crianças deem sinais de que compreendem como navegar na internet e utilizar a tecnologia, elas não estão preparadas para acessar todo tipo de conteúdo. Por isso, é fundamental a supervisão de adultos que definam critérios do que esta criança ou adolescente pode e não pode acessar, e que estes critérios sejam revistos conforme o amadurecimento deste ser em formação.
Vale lembrar que induzir alguém à prática de suicídio é considerado crime em nosso país, e nestes casos, as autoridades precisam ser informadas para a proteção da vítima.
Quais são os principais desafios que você enxerga na abordagem desse tema com adolescentes?
Mateus Córdova de Souza: A puberdade e adolescência costumam ser descritos como períodos de crise, pois são momentos de grandes modificações na vida do sujeito. Há novas responsabilidades sociais relacionadas à escola, à expectativa de futuro em relação ao trabalho, às amizades, à família e ao amor.
A linguagem do adolescente muda, adquire gírias, acrescenta novos assuntos e interesses, altera a postura e expressão corporal. Essa linguagem acompanha as alterações no corpo com repercussões na percepção de si, na autoestima e no posicionamento dos adolescentes em relação aos outros.
Um primeiro desafio, portanto, é para as pessoas que convivem com o adolescente e para o próprio adolescente se adaptarem a estas mudanças.
Culturalmente, a adolescência é idealizada como auge da potência, da juventude, da energia e da libido. Essa situação condiciona a imagem da adolescência como período decisivo para contestação das normas embebido de rebeldia e imprudências. Mas seu oposto também é verificado.
Quem já ouviu o trocadilho da “aborrecência”? Isto é a ideia de que o adolescente é um sujeito que se aborrece facilmente ou aborrece os outros, denotando que este período da vida também pode ser tedioso, retraído e aborrecido.
Na prática, não é seguro acreditar nesses estereótipos, pois cada experiência adolescente é singular. Naturalizar que este período “é assim mesmo” pode afastar adolescentes que necessitam de acolhimento para tratar de suas questões e fazê-los sentirem-se incompreendidos.
Certamente é um período da vida que gera novas questões e conflitos internos. Afinal de contas, está claro que a adolescência é um período de reorganização do sujeito em relação ao que ele foi e o que ele é hoje. Atravessar isso pode parecer confuso, e encontrar as palavras para descrever o que está sentindo talvez seja difícil.
Você considera que as pessoas que tiram a própria vida sempre dão sinais claros?
Mateus Córdova de Souza: Não, nem sempre, porque isto se passa primeiro como uma ideia, um pensamento. Portanto, os sinais podem não remeter imediatamente ao suicídio e identificá-los pode ser difícil se não houver orientação prévia a respeito deste assunto.
Os sinais menos óbvios incluem mudança de humor repentina, como acessos de felicidade e tranquilidade, dando ares de que a pessoa superou a situação. É importante tomar cuidado com isso, pois a recuperação demanda um processo de elaboração e tratamento que não ocorre de uma hora para outra. O sujeito também pode iniciar o movimento de doar objetos pessoais e despedir-se de colegas e familiares.
Além disso, cabe observar o contexto de vida deste sujeito. A exposição a vulnerabilidades socioeconômicas e à violência (como vítima ou testemunha de abuso sexual, bullying e violência doméstica) e o histórico de suicídio no círculo de amigos ou familiares podem interferir na ideação suicida.
Quais são os sinais mais comuns que indicam que uma pessoa está passando por uma crise e pensando em tirar a própria vida?
Mateus Córdova de Souza: Além dos sinais pouco evidentes, em linhas gerais, os sinais mais claros se assemelham às características da depressão, como tristeza, apatia, retraimento, distância emocional e rompantes de agressividade. Ansiedade, irritação e nervosismo também são comuns.
Em parte dos casos, as pessoas chegam a verbalizar direta ou indiretamente sobre a ideação suicida, ou apresentam falas como “a vida não tem sentido”, “sinto-me muito sozinho e vazio” e “queria desaparecer”.
O diagnóstico preexistente de transtornos mentais e o luto prolongado também são sinais importantes de observar.
Além disso, o acesso a meios letais, como armas, pesticidas e medicamentos, bem como o uso de álcool e outras drogas somado a comportamentos de risco e imprudência podem indicar ideação suicida.
Como ajudar sem se sentir intruso ou gerar ainda mais sofrimento para a pessoa?
Mateus Córdova de Souza: Primeiramente, é necessário diferenciar quando alguém pensa a respeito da morte somente refletindo sobre os destinos da vida, o que é completamente comum e não necessariamente representa riscos para o sujeito. Outra coisa é falar da morte com fascinação e planejar tirar a própria vida apresentando os sinais relatados anteriormente. Somente neste último caso chamamos de ideação suicida, e é necessário intervir.
Caso perceba que alguém está passando por isso, o acolhimento é a melhor intervenção a ser feita de início. Para isso, é possível perguntar o que a pessoa está sentindo e se ocorreu alguma situação anterior que ela acredita ter levado ao seu sofrimento atual. Se houver abertura para conversar, é possível manter um diálogo a partir das respostas que ela trouxer.
Como parte do acolhimento, também, indique à pessoa a necessidade de ajuda profissional, como acompanhamento psicanalítico, psicológico ou psiquiátrico. Por fim, procure as pessoas de confiança responsáveis por ela, que podem ser familiares ou professores, e informe que ela necessita de amparo.
Colocar-se no lugar da pessoa para compreender o sofrimento dela é um exercício importante, discernindo que as suas experiências com as mesmas emoções provavelmente são diferentes.
Não é uma tarefa fácil, mas vamos usar um exemplo: a tristeza é algo que pode acometer qualquer ser humano. Mas a intensidade desta tristeza e o ponto em que ela toca sua história são únicos.
Assim, fazemos uma distinção: as emoções são comuns a todos (felicidade, ansiedade, raiva…), mas os afetos ou sentimentos são enlaçados às histórias de vida e às experiências de cada um, por isso são sentidos de maneira singular.
Quando uma pessoa se abre sobre pensamentos suicidas, qual a melhor forma de agir?
Mateus Córdova de Souza: Escute e respeite a biografia da pessoa, tendo ciência de que seu relato é a ponta de um iceberg. De início, sabemos muito pouco sobre as razões que levam alguém aos pensamentos suicidas, então não faça deduções.
Para acolher, prefira fazer perguntas abertas, e se achar propício você pode relatar também alguma experiência pessoal. Cuide das informações que a pessoa der, e não compartilhe além das pessoas de confiança.
É importante seguir o protocolo de indicar acompanhamento profissional e comunicar familiares ou responsáveis o mais breve possível, e jamais deixar a pessoa sozinha na iminência de uma passagem ao ato.
É possível prevenir o suicídio? Quais são as principais formas de prevenção?
Mateus Córdova de Souza: É possível. A prevenção é uma aposta que muitas vezes sai bem-sucedida. As ações sociais e comunitárias, como propostas no Setembro Amarelo, são formas de prevenção em larga escala. Elas se embasam na psicoeducação e na orientação profissional, e podem ser feitas em qualquer época do ano.
Além disso, o acolhimento e o acompanhamento profissional são formas de prevenção que podem ocupar uma dimensão determinante na vida de quem está em sofrimento.
No Brasil, é possível ter atendimento preventivo ao suicídio através do SUS nas Unidades de Pronto Atendimento (UPA), no SAMU e nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).
Caso a pessoa em sofrimento deseje receber atendimento anônimo de suporte emocional, também pode acionar o Centro de Valorização da Vida (CVV), uma rede de voluntários treinados para prevenção do suicídio que atende pelo telefone 188 ou no próprio site.
Como podemos cuidar da nossa saúde mental no dia a dia, especialmente em momentos de estresse ou dificuldade?
Mateus Córdova de Souza: Estamos numa balança constante entre as cobranças dos outros e as nossas próprias necessidades. É um desafio por excelência da humanidade balizar isto para encontrar um bom equilíbrio entre as duas coisas.
Se ficamos demasiado sozinhos com a ideia de priorizarmos unicamente nossas necessidades, logo nos encontraremos em isolamento, com saudades e carências afetivas. Por outro lado, se nos sobrecarregamos com as demandas dos outros, ficamos suscetíveis ao estresse, à ansiedade e ao burnout, por exemplo.
No geral, é comum que isto oscile e flutue, havendo momentos em que encontramos maior facilidade em equilibrar os itens nessa balança, e outros momentos em que isso se torne mais difícil.
Por isso, manter relacionamentos saudáveis, praticar exercícios físicos, reservar momentos para socializar e outros momentos para si mesmo são importantes.
A terapia é uma boa forma de descobrir como fazer isso à sua maneira, pois não existe receita de bolo. A saída é única para cada pessoa, e dinâmica, conforme seu momento de vida.
Quais são os mitos mais comuns sobre o suicídio que precisamos desmistificar?
Mateus Córdova de Souza: Posso elencar alguns mitos comuns para ilustrar. São muitos:
- Pessoas que “tem tudo na vida” não têm motivos para se suicidarem, como se fosse um problema de ordem financeira.
- Isto é coisa de gente desocupada, bastando atribuir-lhe uma função para que o problema desapareça, como se fosse um problema meramente funcional e adaptativo.
- Pessoas com ideação suicida não demonstram alegria, como se o humor não fosse dinâmico.
- A ideação suicida é sinal de loucura, como se não houvesse uma razão para o sofrimento.
- É “só uma fase” e “logo vai passar”, minimizando o potencial de risco associado ao sofrimento.
- A pessoa está pagando por suas ações em outras vidas, portanto carrega seu karma através de forças místicas, ignorando a dinâmica psíquica do sujeito.
No geral, os mitos procuram generalizar o fenômeno do suicídio, como se fosse possível unir toda a experiência em torno de origens ou resoluções comuns para todos.
A experiência clínica aponta justamente na outra direção: para que a pessoa se recupere do sofrimento em que se encontra, o tratamento buscará que ela descubra o que fazer com seu sintoma, no sentido de compor uma arte da existência de autoria própria.
Quando é preciso procurar ajuda profissional e qual a diferença entre um psicólogo e um psiquiatra?
Mateus Córdova de Souza: É possível procurar ajuda profissional em qualquer momento da vida. Em casos graves, a urgência do acompanhamento em saúde mental está clara. Mas não espere o sofrimento extremo bater à porta.
- Tem alguma questão sobre si mesmo(a) que gostaria de compreender melhor, como conhecer sua história de vida?
- Percebe repetições de comportamento que, vira e mexe, levam a algum sofrimento?
- Possui algum sintoma que o(a) acompanha?
Procure um profissional de saúde mental.
O psicólogo é o profissional em saúde mental que cursou Psicologia e estudou as teorias da personalidade, os modos de funcionamento psíquico, os comportamentos humanos, os afetos e emoções, as psicopatologias e suas expressões na cultura e na sociedade no decorrer da História.
O tratamento psicológico é realizado através do vínculo entre o profissional e o paciente, e a escuta é o principal instrumento de trabalho do Psicólogo, através do qual ele poderá fazer suas intervenções. Também poderá aplicar testes e fazer uma avaliação psicológica.
Há diferentes abordagens psicológicas. Por exemplo, uma com ênfase nas possibilidades abertas no aqui e agora; outra, com ênfase no comportamento humano; outra, com ênfase no funcionamento cerebral e neuronal, entre outras abordagens.
E há, ainda, uma distinta área conhecida como Psicanálise, que é estudada nos bancos de Psicologia, mas se constitui como área à parte, cuja ênfase se dá nas representações inconscientes criadas pelo paciente, seus afetos e seu desejo.
Já o psiquiatra é o profissional formado em Medicina que optou pela residência psiquiátrica, que é uma especialização nesta área após a faculdade, em que geralmente ele passa a trabalhar com a saúde mental junto a enfermeiros e psicólogos em Hospitais, nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), entre outros lugares que oferecem atendimento em saúde mental.
A formação base da medicina tem ênfase biológica, anatômica e fisiológica. Por isso, a maioria dos psiquiatras entra com intervenção medicamentosa, mas também podem oferecer psicoterapia (o tratamento pela fala) caso se capacitem para isto.
Mateus Córdova de Souza é formado em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e especializando em Psicanálise com Crianças e Adolescentes pelo Instituto Espe.