Os memes que nos perseguem — Arte Enem
Vem compreender um pouco melhor o fenômeno dos memes e sua relação com a história da arte, da mídia e do comportamento coletivo.

Memes são uma parte cada vez mais fundamental de nossas vidas.
Até porque a maior parte de nós passa grande parte de seus dias conectada, nem sempre voluntariamente, a smart TVs, notebooks, tablets, smartwatches e, sobretudo, às inescapáveis telas retangulares em nossos bolsos e bolsas que, pelo menos até o momento, são a hipermídia que integrou em único aparelho tudo que outrora era específico das mídias impressas, cinema, rádio, TV e comunicações interpessoais.
Assim, áudios famosos, jargões populares e cenas icônicas do mundo virtual já penetram, sem grandes dificuldades, em nosso mundo material. Não seria exagero afirmar que o digital e o real não são esferas distintas, mas extensões um do outro.
Quando conversamos pessoalmente, nosso linguajar cotidiano já incorpora termos oriundos do ciberespaço: biscoitar, tankar, hitar, flopar, shippar. E mesmo quando não estamos com nossos dispositivos abertos, nossas redes ainda são inundadas com montagens, vídeos curtos, gifs e os famosos macros de imagem. Isto é, as notórias fotos e desenhos toscamente diagramados com sobreposição de textos escritos, geralmente de natureza irônica, quando não abertamente escrachada.
Esses produtos midiáticos tão comuns podem ser piadas internas, paródias, observações aleatórias cujo efeito cômico reside justamente em sua natureza absurda ou surreal. Também podem ser comentários relativamente inocentes sobre aspectos inócuos do dia a dia, representando as vivências compartilhadas de um grupo de pessoas que se identifica pelo que há de comum entre elas.
Por outro lado, memes também podem ser intencionalmente chocantes, sombrios, ofensivos e potencialmente criminosos, espalhando notícias falsas, encorajando práticas de auto-dano e carregando discursos de ódio, reproduzindo e reforçando ideias racistas, misóginas e LGBTfóbicas ocultas sob a máscara do humor. Há setores inteiros do ciberespaço dedicados a abrigar e fomentar memes que atentam abertamente contra os direitos humanos.
Portanto, como devemos fazer ao consumir qualquer outro produto criativo, seja um filme, um livro, uma canção, uma performance ou uma pintura, é sempre cabível, sensível e justo apreciar os memes com criticidade, questionando as ideias perigosas que eles são capazes de carregar.
De onde vem o termo “meme”?
Certo. Podemos observar que os memes se tratam de um universo vasto. E que, tal como muitas formas de arte, guarda o poder de gerar catarse, leveza, respostas emocionais positivas, senso de comunidade, ou o que há de mais perigoso a respeito de nossa natureza – o fogo que aquece, ilumina e cozinha, afinal, é o mesmo que incendeia.
Todavia, essas constatações, embora façam muito para elucidar o lugar dos memes na cultura digital contemporânea, não nos explicam de onde eles vieram, porque existem ou como se tornaram um componente fundamental de nossas experiências socioculturais.

O biólogo Richard Dawkins popularizou o termo “meme” em seu livro de 1976, “The Selfish Gene” (publicado em português como “O Gene Egoísta”, em edição da Gradiva de 1989, e em edição da Companhia das Letras de 2007). A princípio, Dawkins utilizou a palavra para descrever algo como o equivalente cultural de um gene, ou seja, uma unidade cultural que seres humanos transmitem a seus descendentes, de modo a compor repertórios de conceitos e imaginários coletivos.
É evidente que os memes não são transmitidos exatamente da mesma forma que os genes: não nascemos com eles; todavia é inegável que os assimilamos das pessoas que nos rodeiam, e que eles são fatores decisivos em nossas vidas. Não são inevitáveis, mas têm um peso imenso em nossa formação como pessoas autônomas.
Da mesma forma que nossos corpos carregam genes ancestrais, que persistem, se transformam e assimilam infusões de novos elementos, nossas memórias coletivas e imaginários, demarcados por religiões, línguas faladas, sistemas de escrita, preferências estéticas, identidades regionais ou nacionais, carregam imensas malhas de memes, que também persistem, se transformam e assimilam novos significados.
Deste ponto de vista, podemos afirmar que o amor pelo futebol, o uso casual do chinelo em contextos sociais e o chuveiro elétrico são memes amplamente difundidos entre as culturas latino-americanas. O mesmo pode ser dito acerca do uso de trajes esportivos da marca Adidas entre os gopniki do Leste Europeu ou do uso de xadrez entre os escoceses.
É importante observar, evidentemente, que nenhuma dessas unidades de sentido representa todos os membros de uma cultura, ou mesmo a maior parte dela. Mas o impacto dos memes comumente se baseia em sua capacidade de encapsular e ironizar estereótipos, muitas vezes perpetuados por aqueles que são alvos destes mesmos estereótipos.
Entretanto, desde a definição proposta por Dawkins, a linguagem avançou. O termo foi ressignificado várias vezes, até tornar-se comum utilizar a palavra meme para se referir a essa unidade cultural tão especificamente familiar à vida conectada: os conteúdos breves, impactantes e frequentemente cômicos que são onipresentes nos espaços digitais.

Nesse sentido, podemos dizer que o meme “Nazaré Confusa”, composto por 4 imagens da atriz Renata Sorrah, no papel da antagonista da telenovela Senhora do Destino, Nazaré Tedesco, cercada por fórmulas de física e matemática, tornou-se um item obrigatório no repertório do ciberespaço. Esse meme foi, inclusive, difundido internacionalmente, já que não inclui texto em português e se faz entender apenas pelas expressões faciais da atriz e os cálculos que a rodeiam. Trata-se, pois, de um meme que é compreensível até mesmo para pessoas que nunca tiveram contato com a novela questão ou mesmo com a atriz representada. “Nazaré Confusa” tornou-se, portanto, um componente fortíssimo da cultura contemporânea brasileira e do ciberespaço como um todo.
“Nazaré” é tão familiar para as pessoas conectadas quanto a imagem de Cristo crucificado é para aqueles que são familiarizados com a iconografia cristã, as camisetas estampadas com o rosto de Ernesto “Che” Guevara são para aqueles que a elas associam valores de esquerda, revolução e contracultura, ou o urso polar ao qual comumente recorrem as campanhas publicitárias da Coca Cola no período natalino.
Os memes operam, portanto, a partir de referências familiares aos que os interpretam. Não é à toa que tantos deles se referem a fortes tendências introduzidas pela música pop, pelo cinema hollywoodiano e por reality shows em alta em dado momento. Inúmeros memes sempre emergiram dos filmes dos estúdios Marvel, por exemplo, assim como de sucessos musicais estrondosos como ocorreu com “Casca de Bala” e “Descer pra BC”.

Por outro lado, memes também podem informar, ou seja, instigar quem os aprecia a querer saber do que eles tratam, pois é natural ao ser humano encontrar conforto no pertencimento a uma comunidade de sentido. Da mesma forma que qualquer obra de arte repleta de componentes que nos são estranhos, um meme para o qual não temos as chaves de leitura mais adequadas se apresenta como um enigma, um convite à interpretação. Queremos, afinal de contas, entender a piada, ou, no mínimo entender o que ela diz, para então rechaçá-la com propriedade.
A escultura renascentista de Michelangelo conhecida como “Pietá”, que representa Cristo morto nos braços da Virgem Maria, por exemplo, é amplamente reconhecida, ao ponto de muitas pessoas não saberem que muitos outros artistas representaram o tema muito antes de Michelangelo. Ou que o próprio Michelangelo esculpiu o tema mais de uma vez, e que essas representações, em conjunto, partilham características e reproduzem ideias convencionais, mas também acrescem novas camadas de sentido, novos estilos, novas ideologias. A “Pietá” é, à sua maneira, um meme, assim como as estátuas equestres de heróis nacionais que adornam as praças públicas, os penteados que marcam uma década e as paletas de cores favorecidas pelos estilistas a cada estação.
Compreender os memes, enfim, é compreender como construímos nosso lugar no mundo, como montamos nossas linguagens, nossas ideias acerca do que fomos e do que queremos ser. Os memes encapsulam nossas vivências culturais no que elas têm de mais construtivo, de mais destrutivo e de mais fundamental.