Saiba por que o aumento das religiões de matriz africana no Censo 2022 é um tema relevante para quem está se preparando para o Enem.

Quem somos nós, brasileiros, quando olhamos para nossas crenças mais íntimas?
Os dados preliminares do Censo 2022, divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), ajudam a responder essa pergunta de um jeito bastante revelador: o número de pessoas que se identificam com religiões de matriz africana — como o Candomblé e a Umbanda — mais do que triplicou em pouco mais de uma década.
Em 2010, cerca de 0,3% da população se declarava adepta dessas religiões. Em 2022, esse número saltou para 1%. Parece pouco? Pode até parecer num primeiro olhar, mas estamos falando de quase 2 milhões de pessoas que, hoje, assumem com orgulho uma fé que foi, por muito tempo, marginalizada e silenciada.
Mais do que uma simples mudança de estatística, esse dado indica um movimento profundo de transformação cultural e social. É o Brasil se olhando no espelho e reconhecendo partes de si que, por muito tempo, foram deixadas à margem. Para quem está se preparando para o Enem, acompanhar essas transformações é entender como a sociedade brasileira está em constante construção — e como essa construção passa, inevitavelmente, por temas como identidade, resistência, ancestralidade e pluralismo.
O que explica esse crescimento?
O aumento expressivo do número de praticantes das religiões afro-brasileiras não pode ser reduzido a uma moda ou a um interesse momentâneo por “espiritualidades alternativas”. Ele está profundamente ligado a um contexto maior: o de resistência ao preconceito, o de afirmação da identidade negra e o de valorização da ancestralidade.
Pesquisadoras como Maria Goreth Santos, do próprio IBGE, e Regina Novaes, antropóloga do ISER (Instituto de Estudos da Religião), destacam que estamos vivendo uma virada importante na forma como essas religiões são percebidas — inclusive por quem as pratica.
Antes, o medo da intolerância religiosa e do racismo fazia com que muitas pessoas escondessem sua fé. Hoje, com o avanço das políticas de valorização da cultura afro-brasileira, mais informação circulando e debates sobre racismo ganhando força nas redes e nas escolas, é possível perceber um ambiente mais propício para que essas pessoas se afirmem.
E tem mais: a autodeclaração religiosa está cada vez mais conectada à forma como as pessoas se enxergam no mundo. O fortalecimento da consciência racial — especialmente entre jovens negros — tem levado muita gente a buscar, de maneira ativa, uma reconexão com as raízes africanas. Num país onde a população preta e parda representa a maioria e cresceu 42% entre 2010 e 2022, essa mudança ganha contornos ainda mais simbólicos.
Além disso, o número de pessoas que se identificam como “sem religião” também cresceu, assim como o de evangélicos. Já o catolicismo, historicamente majoritário, vem caindo de forma constante. Esses dados mostram um país cada vez mais plural, mais aberto a diferentes formas de espiritualidade. E é justamente nesse cenário que o crescimento das religiões afro-brasileiras se destaca: porque elas não apenas oferecem um caminho espiritual, mas também representam uma escolha política, cultural e identitária.
Candomblé e Umbanda

Para entender o peso dessa transformação, é importante conhecer um pouco mais dessas tradições religiosas.
O Candomblé, de origem africana, chegou ao Brasil com os povos escravizados — principalmente os iorubás, jejes e bantos. Cada nação do Candomblé tem suas particularidades, mas todas compartilham o culto aos orixás, que são divindades ligadas à natureza e às forças da vida.
Os rituais do Candomblé envolvem dança, música, comidas sagradas, cânticos em iorubá e a incorporação dos orixás pelos filhos-de-santo. É uma religião que exige dedicação, aprendizado e respeito aos ciclos da vida. Cada pessoa iniciada passa por processos intensos de preparo espiritual, como o bori (alimentação da cabeça), o orô (período de recolhimento) e a conexão com o axé, que é a força vital que rege tudo.

Já a Umbanda é uma religião brasileira, nascida no início do século XX, e representa um encontro entre diferentes tradições: africanas, indígenas, espíritas e católicas. Ela também cultua os orixás, mas dá espaço a outras entidades espirituais, como os pretos-velhos, caboclos e crianças. Os rituais costumam ser mais simples, realizados em terreiros urbanos, com cantos, rezas, uso de ervas e passes energéticos.
O sincretismo — ou seja, a fusão entre diferentes elementos religiosos — está no coração dessas tradições. Durante o período da escravidão e da repressão religiosa, os africanos escondiam seus orixás por trás das imagens dos santos católicos. Iemanjá, por exemplo, foi associada a Nossa Senhora da Conceição; Ogum, a São Jorge. Esse sincretismo foi uma forma inteligente e corajosa de resistência. Um jeito de manter a fé viva, mesmo quando tudo parecia querer apagá-la.
Intolerância religiosa
Apesar do crescimento, as religiões de matriz africana seguem entre as mais atacadas no Brasil. No primeiro semestre de 2024, 276 dos 575 casos de intolerância registrados envolviam essas religiões. Entre 2020 e 2021, os ataques aumentaram 106%.
Essa violência expõe um paradoxo: quanto mais visíveis essas religiões se tornam, mais suscetíveis ficam a ataques. É importante, aqui, diferenciar intolerância religiosa de racismo religioso. O primeiro diz respeito à falta de respeito à crença alheia. O segundo, mais profundo, está enraizado no racismo estrutural, pois atinge práticas ligadas diretamente à cultura negra.
Pesquisadores da USP explicam que o racismo religioso se baseia na desvalorização de tudo que foge à matriz cristã eurocêntrica. A ignorância sobre essas religiões contribui para o preconceito, reforçado por séculos de estigmatização.
Nos últimos anos, houve avanços legais importantes. A Lei 14.532/2023 incluiu o fator religioso nos crimes de racismo. A Lei 14.519/2023 criou o Dia Nacional das Tradições de Matriz Africana, e políticas como a PNPIR e a criação da SEPPIR ajudam a garantir direitos e reconhecimento. Ainda assim, a subnotificação e a fragilidade institucional mostram que o caminho é longo.
Contribuições para o Brasil
As religiões de matriz africana influenciam profundamente a cultura brasileira. Seus elementos estão presentes na música (samba, maracatu, axé), na culinária (acarajé, moqueca), na linguagem (palavras de origem africana), nas artes e no vestuário. Essa presença reforça o papel dessas tradições na formação da identidade nacional.
O aumento de adeptos fortalece essa influência, trazendo-a para o centro do debate público e educacional. A questão do Enem 2023 sobre a performance “Gira”, que discutiu a reelaboração estética de rituais religiosos, é um exemplo de como essas práticas aparecem em contextos acadêmicos.
Além disso, há uma estratégia política importante: desde 2013, lideranças adotaram o termo “povos e comunidades tradicionais de matriz africana”, excluindo a palavra “religião” para driblar restrições legais do Estado laico e garantir acesso a políticas públicas. Isso permite, por exemplo, o registro no Cadastro Único (CADÚNICO), abrindo caminho para o reconhecimento social e jurídico desses grupos.
E o Enem com isso?
Pode parecer que tudo isso está muito distante dos vestibulares e das provas do Enem, mas é justamente o contrário. A pluralidade religiosa, a luta contra o racismo, a valorização da cultura afro-brasileira e os movimentos sociais são temas recorrentes nas redações e nas questões de ciências humanas. Ao entender o crescimento das religiões de matriz africana, você está conectando várias áreas do conhecimento: História, Sociologia, Filosofia, Cultura, Direitos Humanos e até Literatura.
Além disso, esse tipo de tema permite desenvolver um repertório sociocultural riquíssimo. Você pode citar autores como Lélia Gonzalez, Muniz Sodré, Djamila Ribeiro e Abdias do Nascimento, por exemplo. Pode falar sobre a Lei 10.639/03, que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas. Pode comentar o papel dos terreiros como espaços de acolhimento, educação e preservação da memória.
Tudo isso enriquece sua argumentação, mostra senso crítico e revela que você está atento ao mundo em que vive — qualidades muito valorizadas nas bancas avaliadoras.
Questões do Enem sobre o tema
(Enem 2023)
TEXTO I
Logo no inicio de Gira, um grupo de sete bailarinas ocupa o centro da cena. Mãos cruzadas sobre a lateral esquerda do quadril, olhos fechados, troncos que pendulam sobre si mesmos em vaguissimas órbitas, tudo nelas sugere o transe. Está estabelecido o caráter volátil do que se passará no palco dali para frente. Mas engana-se quem pensa que vai assistir a uma representação mimética dos cultos afro-brasileiros.
TEXTO II

Disponível em: www.grupocorpo.com.br. Acesso em: 2 jul. 2019.
No diálogo que estabelece com religiões afro-brasileiras, sintetizado na descrição e na imagem do espetáculo, a dança exprime uma:
a) crítica aos movimentos padronizados do balé clássico.
b) representação contemporânea de rituais ancestrais extintos.
c) reelaboração estética erudita de práticas religiosas populares.
d) releitura irónica da atmosfera mística presente no culto a entidades.
e) oposição entre o resgate de tradições e a efemeridade da vida humana.
(Enem 2024)
Uma definição possível para o conceito de arte afro-brasileira pode ser: produção plástica que é feita por negros, mestiços ou brancos a partir de suas experiências sociais com a cultura negra nacional. Exemplos clássicos dessa abordagem são Carybé (1911-1997), Mestre Didi (1917-2013) e Djanira da Motta e Silva (1914-1979), cujas obras emergem e ganham forma em razão do ambiente social no qual habitaram e viveram. Se Didi era um célebre representante da cultura religiosa nagô baiana e brasileira, iniciado desde o ventre no candomblé, Carybé era argentino e, naturalizado brasileiro, envolveu-se de tal modo com essa religião que alguns dos orixás dos quais conhecemos a imagem visual são produções suas.
Disponível em: www.premiopipa.com. Acesso em: 13 nov. 2021 (adaptado).
Sob a perspectiva da multiculturalidade e de acordo com o texto, a produção artística afro-brasileira caracteriza-se pelo(a):
a) estranhamento no modo de apropriação da cultura religiosa de matriz africana.
b) distanciamento entre as raízes de matriz africana e a estética de outras culturas.
c) visão uniformizadora das religiões de matriz africana expressada nas diferentes produções.
d) relação complexa entre as vivências pessoais dos artistas e os referenciais estéticos de matriz africana.
e) padronização da forma de produção e da temática da matriz africana presente nas obras dos artistas citados.
(Enem 2013)
A recuperação da herança cultural africana deve levar em conta o que é próprio do processo cultural: seu movimento, pluralidade e complexidade. Não se trata, portanto, do resgate ingênuo do passado nem do seu cultivo nostálgico, mas de procurar perceber o próprio rosto cultural brasileiro. O que se quer é captar seu movimento para melhor compreendê-lo historicamente.
MINAS GERAIS: Cadernos do Arquivo 1: Escravidão em Minas Gerais. Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, 1988.
Com base no texto, a análise de manifestações culturais de origem africana, como a capoeira ou o candomblé, deve considerar que elas:
a) permanecem como reprodução dos valores e costumes africanos.
b) perderam a relação com o seu passado histórico.
c) derivam da interação entre valores africanos e a experiência histórica brasileira.
d) contribuem para o distanciamento cultural entre negros e brancos no Brasil atual.
e) demonstram a maior complexidade cultural dos africanos em relação aos europeus.
GABARITO: 1. C / 2. D / 3. C