A prosa de Chico Buarque de Hollanda

Cantor e compositor dos mais importantes do país, Chico Buarque de Hollanda também é conhecido pelos seus romances e peças teatrais. Conheça um pouco mais dessa sua produção em prosa.

Chico Buarque de Hollanda é autor de canções especiais, que fazem parte do repertório brasileiro de todas as épocas. Verdadeiros clássicos como Geni e o Zeppelin, Apesar de Você, e tantas outras.

Canções que souberam traduzir a tensão de momentos delicados da história nacional, como a ditadura militar e a respectiva censura, violência e perseguição advindas do regime. A qualidade poética dessas letras, muito reconhecida nos meios acadêmicos, coloca Chico no patamar de grande poeta da moderna literatura brasileira.

A prosa de Chico Buarque

Contudo, ainda no início de sua carreira como compositor, Chico já fazia incursos pela prosa, escrevendo crônicas e peças teatrais, estando mesmo ligado a grupos teatrais em sua juventude. Chico, porém, faz questão de indicar a maior influência de sua literatura: a música, como admitiu em algumas ocasiões.

Chico Buarque - livros
Capas de alguns de seus livros. Fonte: https://bit.ly/2zOXi9M

Fazenda Modelo (1974)

Suas primeiras experiências fora das canções e teatro foi com Fazenda Modelo, “novela pecuária”, na qual Chico Buarque tece uma alegoria sobre a sociedade dos homens – falando, no entanto, exclusivamente dos bois e vacas de uma fazenda fictícia.

O universo da fábula (animais que pensam e agem como humanos) e as relações de poder entre os bichos da fazenda executam uma parábola sobre as diversas formas de dominação social sobre o “rebanho” humano.

A Fazenda modelo é uma promissora comunidade bovina – liderada pelo boi Juvenal, o bom – que se vê submetida a um processo radical de transformação, em que tudo que era natural é considerado “atrasado” ou “errado” e passa a ser cientificamente controlado.

Destroem-se todas as formas de auto-regulação do indivíduo, desde as alimentares até as sexuais, garantida através da inseminação artificial. A narrativa vertiginosa e verborrágica, lidando o tempo todo com o absurdo e com momentos de um prosa surrealista, que faz lembrar a prosa modernista da primeira geração.

“Daí Juvenal começou a dizer que invejava os touros. Invejava Abá em particular, o campeão de todos os machos de todos os tempos das fazendas. Lubino ouvia incrédulo, pois não era mesmo para crer na maneira como Juvenal falava de Abá. Juvenal invejava Abá da boca para fora. Lubino percebia que lá na garganta Juvenal tinha um nó que odiava Abá, estrangularia Abá.

O único rancor de Juvenal. Porque passando a garganta, lá no meio do intestino grosso, novamente Juvenal invejava Abá, admirava e lambia Abá. Mas isso Juvenal não queria admitir. Nem iria vomitar ali para o menino ver. Então ele confeccionava cada palavra cuidadosamente nos fundilhos.

Bombeava-a devagarinho pelos canais tortuosos. Na traqueia a palavra ganhava aspereza, arredondando-se em seguida no céu da boca. E acabava a viagem babada na ponta da língua, um catarro agridoce. Uma palavra rasurada, interceptada, inconsistente de tão baldeada. Foi assim que Juvenal articulou a palavra orgasmo.

E falou dos orgasmos de Abá, das delícias do orgasmo, o sublime do orgasmo, o privilégio abençoado do orgasmo, dum jeito que Lubino ficou olhando a cara dele, que era uma cara de boi que não tinha nada a ver com o que estava falando.” (Chico Buarque. Fazenda Modelo. Companhia das Letras. 1974)

Estorvo (1991)

Primeiro romance do autor, Estorvo aborda a falta de perspectiva do homem contemporâneo, inserido numa sociedade hipócrita, cujos valores se encontram em decadência. Narrado em primeira pessoa, com o tempo a transcorrer na perspectiva psicológica, não assinalando nenhuma cronologia, o texto se mantém constantemente no limite entre o sonho e a vigília, suspenso por um desespero paranóico, que se apóia na subjetividade do cotidiano.

Desprovido de qualquer elo com os valores da sociedade, o protagonista mostra-se desagregado das regras sociais: não se ajustando a nenhum emprego, sustentado passivamente pela mulher, depois pela irmã, não sendo capaz de administrar os bens da família após a morte do pai.

Além disso, não valoriza nenhum bem material: perde a mala com suas roupas, tem seu dinheiro roubado, seu sítio invadido, as jóias roubadas são pagas com uma droga da qual ele só pensa em se livrar, nem sequer em vender, entretanto, ele não reage!

“Meu amigo bebia comigo na piscina, e àquela altura a sua conversa já não fluía. Acho que ele falava de literatura russa, mas não tenho certeza, pois as palavras saíam enroladas e se perderam. Mas sua imagem me volta cada vez mais nítida; lá está a correntinha de ouro no pescoço, meio embaraçada, a pinta cabeluda logo abaixo do cotovelo, as costelas saltadas no flanco feito um teclado, o calção branco com três listras verdes verticais.

Só não consigo me lembrar dos pés do meu amigo. Vivíamos descalços, e não me ocorre ter olhado alguma vez aqueles pés. Nunca reparei se eram grandes ou bonitos. Não sei dizer se os pés do meu amigo eram enormes, como os do professor de ginástica assassinado. Torno a me lembrar do meu amigo olhando o horizonte, seus cabelos molhados, negros como nunca, e ele agora se penteia com mais vagar que antes.

Provavelmente se sentindo lembrado, tira longo proveito da situação. Traga um cigarro, que na lembrança anterior nem existia, e fica se deixando olhar, como um ator de perfil. Que se vira para mim de repente, querendo me surpreender, com um brilho nos olhos que me incomoda de novo.

E já vai anoitecer sem que eu tenha conseguido olhar seus pés. Mas mesmo aquilo que a gente não se lembra de ter visto um dia, talvez se possa ver depois por algum viés da lembrança. Talvez dar órbita de hoje aos olhos daquele dia. E é assim que vejo finalmente os pés do meu amigo, pelo rabo do olho da lembrança. Vejo mas não sei como são; são pés refratados dentro da água turva, impossíveis de julgar.”

(Chico Buarque. Estorvo. Companhia das Letras. 1991)

Benjamim (1995)

Chico Buarque volta ao romance onírico em Benjamim, mas com uma narrativa menos carregada. Além disso, ao contrário do tom confessional de Estorvo, Benjamim, é narrado em terceira pessoa, construindo a história a partir do olhar de cada personagem, de modo cinematográfico.

O enredo trata do delírio do protagonista, o ex-modelo fotográfico Benjamim Zambraia, segundos antes de morrer num fuzilamento. Narrando os acontecimentos de sua vida que o levaram àquele momento, Benjamin retomará os conflitos entre ele e as mulheres de sua vida, Castana Beatriz e Ariela Masé, relações que culminarão em seu trágico destino final.

“(…) assistiu ao que já esperava: sua existência projetou-se do início ao fim, tal qual um filme, na venda dos olhos. O tempo que se estabelece para essa existência é o mínimo possível, o tempo da morte em plena consumação: não há perspectiva futura e o passado se trona completamente presente.”

(Chico Buarque. Benjamim. Companhia das Letras, 1995)

Budapeste (2003)

O narrador e personagem central é o Ghost Writer (escritor que trabalha por encomenda e cede à autoria ao cliente) José Costa, sócio-proprietário da Cunha & Costa Agência Cultural, responsável por produzir textos comerciais diversos por encomenda.

Depois de terminar um trabalho, e de ver o sucesso crítico e comercial do livro – ao qual o real autor fica totalmente alheio por conta do contrato de autoria – José Costa se vê envolvido numa crise profissional e existencial que o levará a uma experiência de conflito e redenção na cidade de Budapeste.

Aos deslocamentos entre a cidade do Rio de Janeiro e a de Budapeste serão somadas as diversas cisões que marcam a obra. Duas cidades, duas mulheres, dois autores, duas línguas e uma série de outros duplos sugeridos pelo livro intensificam o conflito do personagem principal.

José abandona Vanda, esposa com quem tem um filho, para descobrir-se Zsoze nos braços de Krista, em Budapeste. José Costa, escritor exclusivamente dedicado à prosa, descobre em Budapeste o autor Zsoze, que só escreve em versos. O domínio do idioma magiar transpassa esse aprendizado.

Dotado, portanto, de um forte caráter metalinguístico, Budapeste explora a posição do autor na obra, mas culmina também num olhar sobre a indústria e cultura de massas. Projeta-se nesse “autor de autores” um baile de máscaras entre linguagens e autorias que, ao tempo em que se apossam, dividem e fragmentam o sujeito que fala. Escrito em primeira pessoa, o romance parece estar possuído de outros autores, veja:

“Eu era um jovem louro e saudável quando adentrei a baía de Guanabara, errei pelas ruas do Rio de Janeiro e conheci Teresa. Ao ouvir cantar Teresa, caí de amores pelo seu idioma, e após três meses embatucado, senti que tinha a história do alemão na ponta dos dedos. A escrita me saía espontânea, num ritmo que não era o meu, e foi na batata da perna de Teresa que escrevi as primeiras palavras na língua nativa.

No princípio ela até gostou, ficou lisonjeada quando eu lhe disse que estava escrevendo um livro nela. Depois deu para ter ciúme, deu para me recusar seu corpo, disse que eu só a procurava a fim de escrever nela, e o livro já ia pelo sétimo capítulo quando ela me abandonou.

Sem ela, perdi o fio do novelo, voltei ao prefácio, meu conhecimento da língua regrediu, pensei até em largar tudo e ir embora para Hamburgo. Passava os dias catatônico diante de uma folha de papel em branco, eu tinha me viciado em Teresa.

Experimentei escrever alguma coisa em mim mesmo, mas não era tão bom, então fui a Copacabana procurar as putas. Pagava para escrever nelas, e talvez lhes pagasse além do devido, pois elas simulavam orgasmos que me roubavam toda a concentração. Toquei na casa de Teresa, estava casada, chorei, ela me deu a mão, permitiu que eu escrevesse umas breves palavras enquanto o marido não vinha.

Passei a assediar as estudantes, que às vezes me deixavam escrever nas suas blusas, depois na dobra do braço, onde sentiam cócegas, depois na saia, nas coxas. E elas mostravam esses escritos às colegas, que muito os apreciavam, e subiam ao meu apartamento e me pediam que escrevesse o livro na cara delas, no pescoço.

Depois despiam a blusa e me ofereciam os seios, a barriga e as costas. E davam a ler meus escritos a outras colegas, que subiam ao meu apartamento e me imploravam para arrancar suas calcinhas, e o negro das minhas letras reluzia em suas nádegas rosadas. Moças entravam e saiam da minha vida, e meu livro se dispersava por aí, cada capítulo a voar para um lado.

Foi quando apareceu aquela que se deitou em minha cama e me ensinou a escrever de trás para diante. Zelosa dos meus escritos, só ela os sabia ler, mirando-se no espelho, e de noite apagava o que de dia fora escrito, para que eu jamais cessasse de escrever meu livro nela. E engravidou de mim, e na sua barriga o livro foi ganhando novas formas, e foram dias e noites sem pausa, sem comer um sanduíche, trancado no quartinho da agência, até que eu cunhasse, no limite das forças, a frase final:
e a mulher amada, cujo leite eu já sorvera, me fez beber da água com que havia lavado sua blusa.”

(Chico Buarque de Hollanda. Budapeste. São Paulo, Companhia das Letras, 2003. p. X)

Leite Derramado (2009)

O livro é narrado por Eulálio Montenegro D’Assumpção, um senhor com 100 anos de idade, que está em um hospital delirando em seu leito de morte, e que ali relembra, da melhor maneira possível, os trechos mais tocantes de sua vida.

Membro de uma tradicional família brasileira, ele relata, num monólogo dirigido à filha, às enfermeiras e a quem quiser ouvir, a história de sua linhagem desde os ancestrais portugueses, passando por um barão do Império, um senador da Primeira República, até o tataraneto, garotão do Rio de Janeiro atual.

Construindo uma saga familiar caracterizada pela decadência social e econômica, tendo como pano de fundo a história do Brasil dos últimos dois séculos. A visão que o autor nos oferece da sociedade brasileira compadrios, preconceitos de classe e de raça, machismo, oportunismo, corrupção, destruição da natureza e delinqüência.

ordem lógica e cronológica habitual do gênero é embaralhada, por se tratar de uma memória desfalecente, repetitiva mas contraditória, obsessiva mas esburacada. A fala desarticulada do ancião, ao mesmo tempo que preenche uma função de verossimilhança, criam dúvidas e suspenses ao leitor.

Percorre todo o texto a paixão mal vivida e mal compreendida do narrador por uma mulher, Matilde. As relações amorosas, entre um homem e as mulheres de sua vida já se tratam de uma constante na prosa de Chico Buarque.

O tema, como todos sabem, é um dos pontos fundamentais de suas canções. Em Leite Derramado, os preconceitos e o ciúme doentio do homem barram a realização plena da mulher e levam-na a um triste fim, que na figura patética de Eulálio carregam ares de um melancólico desastre.

“(…) Com o tempo aprendi que o ciúme é um sentimento para proclamar de peito aberto, no instante mesmo de sua origem. Porque ao nascer, ele é realmente um sentimento cortês, deve ser logo oferecido à mulher como uma rosa. Senão, no instante seguinte ele se fecha em repolho, e dentro dele todo o mal fermenta. O ciúme é então a espécie mais introvertida das invejas, e mordendo-se todo, põe nos outros a culpa de sua feiúra.”

(Chico Buarque. Leite Derramado. Companhia das Letras, 1995)

O Irmão Alemão (2014)

Em 2014, Chico lança a narrativa testemunhal e romance memorialístico O Irmão Alemão. O livro traz às páginas um caso real da vida do autor, quando, aos 22 anos, Chico Buarque descobriu que tinha um irmão alemão nunca antes mencionado. Em O Irmão Alemão, ficção e realidade se misturam. O texto tematiza também o trauma e as cicatrizes deixadas pelo período civil-militar no Brasil, estendendo o foco também à violência vivenciada em função da Segunda Guerra Mundial.

No livro, um narrador-personagem, em primeira pessoa, viaja à Alemanha para procurar o irmão alemão. No romance diz-se que Francisco de Hollander roubava carros na adolescência, episódio conhecido na vida do próprio ator que, em 1961, aos 17 anos de idade, foi detido furtando carros por diversão no centro de São Paulo.

“Quando chego à casa do Thelonious ele já me espera no portão com uma lanterna e um arame de ponta retorcida. Vagamos pelas ruas arborizadas do bairro, até que ao cair da tarde topamos com um Skoda estacionado bem a jeito, numa esquina em declive sem muita iluminação. Colo as palmas das mãos feito um par de ventosas na janela, faço pressão para baixo e o vidro cede uns dez centímetros.

O suficiente para o Thelonious enfiar o arame ali dentro, enganchar e puxar o pino da porta, no que ele é craque. Peço para tomar o volante, destravo o freio de mão, deixo o Skoda rolar a ladeira e antes mesmo que eu encoste no meio-fio, o Thelonious já está quase deitado aos meus pés com a lanterna acesa entre os dentes e a cabeça metida atrás do painel. Remove umas peças que não vejo direito, junta uns fios, e depois de uns estalos e umas faíscas o motor pega.”

(BUARQUE, 2014, p.11)

Apesar das várias referências à vida do compositor, alguns detalhes estão longe de sua biografia, como a descendência italiana da mãe de Hollander; ou o irmão Mimmo, de quem o personagem tem inveja (o autor foi criado não com um, mas com seis irmãos). Desse modo, vemos que o conflito estabelecido entre autor, autoria e obra, bem como a relação entre realidade e ficção, são preocupações constantes na obra de Chico Buarque de Hollanda, e inclusive figuram em suas composições como “A voz e o dono da voz” e “Rubato”.

Exercícios sobre a prosa de Chico Buarque de Hollanda

Resolva agora alguns exercícios para você testar os seus conhecimentos sobre Chico Buarque de Hollanda!

1. Chico Buarque de Holanda possui uma obra em prosa marcada por impressões autobiográficas, que mesclam a biografia do autor com a de seus personagens. Esse caráter é mais evidente nos romances:

a) Leite Derramado e Irmão Alemão.

b) O Estorvo e Gota d’água

c) Fazenda Modelo e Irmão Alemão

d) Irmão Alemão e Budapeste

e) Benjamin e Irmão Alemão

2. São características da prosa de Chico Buarque, assinale a alternativa que corresponda à(s) opção(s) INCORRETA(S):

I. O ambiente urbano e cotidiano.

II. A alternância entre o sonho e a realidade.

III. A adaptação direta de suas canções.

IV. O forte teor imagético.

a) I e III.

b) III.

c) I, II e IV.

d) II

e) IV e II.

3. Considerando o trecho abaixo, assinale a alternativa que corresponda à(s) opção(s) CORRETA(S):
“Formam uma tapeçaria decorada com um elemento obsessivo, uma figura humana que muda de flanco, de dimensões, de roupa e de cenário, mas nunca de fisionomia, e essa figura é Benjamim Zambraia aos vinte e cinco anos. Acompanham-no aqui e ali coadjuvantes sortidos, difíceis de identificar numa visão geral.”

(HOLLANDA, Chico Buarque de. Benjamim. São Paulo: Cia das Letras, 2007.p. 22)

I. A prosa de Chico Buarque de Hollanda possui um caráter visual e imagético que lembra as suas canções.

II. Os romances de Chico Buarque de Hollanda falam do próprio autor.

III. Os personagens de Chico Buarque de Hollanda são baseados em pessoas reais.

IV. Os romances de Chico Buarque de Hollanda estão ambientados no espaço urbano e no tempo atual.

a) II e IV

b) I e IV

c) I, III e IV.

d) NDA

e) II

Gabarito:

1. a
2. b
3. b

Sobre o(a) autor(a):

Renato Luís de Castro é graduado em Letras/Francês pela Unesp-Araraquara, e mestrado em Estudos Literários também na Unesp, atualmente concluindo Licenciatura pela UFSC.

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