Político, médico, pintor, biógrafo, ensaísta, tradutor, romancista e… poeta! Conheça a carreira desse intelectual de múltiplas expressões e autor de vasta obra poética, que oscila entre o formalismo, o misticismo, as recordações da infância e a figura do negro.
Esta aula tem como objetivo apresentar um panorama da vida e da produção literária do poeta Jorge de Lima. O escritor se inscreve na Segunda Fase do Modernismo Brasileiro, época de importantes nomes para a nossa literatura, tais como Cecília Meireles, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes.
Homem de múltiplas habilidades e profissões, artista de personalidade e intelectual de erudição ímpar, Jorge de Lima nos brindou com sua obra-prima intitulada Invenção de Orfeu. Um texto onde o épico e o lírico coexistem, e onde o poeta revela toda sua força e autenticidade literária.
Entenda 2ª geração modernista
Confira agora com a professora de literatura Camila Brambilla, do canal do Curso Enem Gratuito, as principais características dos autores da segunda fase do modernismo no Brasil. Assim você entende melhor a obra de Jorge de Lima:
Quem foi Jorge de Lima?
Jorge de Lima (1893-1953) nasceu em Alagoas. Formado em Medicina, ocupou diversos cargos públicos ao longo de sua vida, mantendo, porém, um constante interesse pelas artes plásticas e pela literatura. Publicou seu primeiro livro, XIV alexandrinos, em 1914, ainda como estudante universitário.
No ano de 1930, transferiu-se definitivamente para o Rio de Janeiro e, em 1935, converteu-se ao catolicismo. A espiritualidade e o catolicismo são duas das temáticas mais recorrentes na obra poética de Jorge de Lima.
As primeiras composições de Jorge de Lima manifestam influências nítidas da forma parnasiana e de recursos formais ou temáticos caros a estética simbolista. Veja um de seus sonetos em que podemos constatar tais características:
O acendedor de lampiões
Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Este mesmo que vem infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar-se à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente!
Um, dois, três lampiões, acende e continua
Outros mais a acender imperturbavelmente,
À medida que a noite aos poucos se acentua
E a palidez da lua apenas se pressente.
Triste ironia atroz que o senso humano irrita: —
Ele que doira a noite e ilumina a cidade,
Talvez não tenha luz na choupana em que habita.
Tanta gente também nos outros insinua
Crenças, religiões, amor, felicidade,
Como este acendedor de lampiões da rua!
Temas abordados por Jorge de Lima
A temática social foi mantida por Jorge de Lima ao longo de seu percurso poético. Em contato mais efetivo com a literatura modernista, ao final da década de 1920, o poeta manifestou interesse na interação dessa temática com a linguagem mais solta, exploradora das formas novas e coloquiais. O poema Essa negra Fulô, publicado em 1928, é o representante mais conhecido dessa fase de sua produção. Leia agora um trecho desse poema:
Essa negra Fulô
Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo)
no banguê dum meu avô
uma negra bonitinha,
chamada negra Fulô.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
— Vai forrar a minha cama
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!
Essa negra Fulô!
Essa negrinha Fulô!
ficou logo pra mucama
pra vigiar a Sinhá,
pra engomar pro Sinhô!
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô,
vem abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!
Essa negra Fulô!
[…]
Os jornais também se dedicam a falar da temática e da produção poética de Jorge de Lima, como é o caso da reportagem do jornal O Globo.
Um terceiro momento na poesia de Jorge de Lima se revela na sua conversão ao catolicismo. O poeta adere à temática da religiosidade, também verificada na obra poética de outros escritores da Segunda Fase do Modernismo Brasileiro.
No caso específico de Jorge de Lima, destacam-se as composições poéticas que exploram a simbologia cristã e suas dimensões místicas, como no poema abaixo:
Dai a Deus o que é de Deus
Darei a César a bandeira da pátria
em que a nobreza de César está gravada;
darei a César o livro em que a história de César está marcada
para os homens do tempo;
darei a César os dízimos
porque César é o dono dos cunhos por vontade de Deus;
darei a César os textos da lei
em que o poder de César está inscrito;
antes que a moeda se enferruje,
darei a moeda a César
em que a efígie de César está gravada.
E depois darei César a Deus
pois em César está gravada a figura indelével de Cristo.
Nesse poema é feita a relação intertextual com um trecho do texto bíblico. Nessa passagem do Novo Testamento, Jesus, inquirido por um homem sobre a pertinência ou não do pagamento do tributo a César, respondeu ao homem pedindo a ele que olhe o que estava estampado (cunhado) na moeda. Era a face de César. Então, segue-se a frase: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21; Mc 12, 17 e Lc 20, 25).
Esse modelo poético, voltado à religiosidade, à transcendência, ao comentário das doutrinas religiosas perpassa a Segunda Fase do Modernismo no Brasil. Trata-se, inicialmente, de uma possível reação ao materialismo extremo a que a literatura se havia submetido quando do surgimento das vanguardas.
É possível enxergar nesse apego temático dos escritores da época também uma resposta histórica ao ateísmo radical, baseado na negação às tradicionais instituições e proposto, por exemplo, por facções políticas que se instauravam então no Brasil, notavelmente na comunidade intelectual, como o comunismo de vertente ateísta.
O canal Globo News preparou uma reportagem especial sobre a vida e o legado literário de Jorge de Lima. Bora saber mais?
A invenção de Orfeu
A obra literária mais notável de Jorge de Lima é, indiscutivelmente, A invenção de Orfeu. Trata-se de um dos projetos mais ambiciosos e ousados da literatura brasileira. Considerado ápice e síntese da carreira de Jorge de Lima, a obra propõe-se a contar “a história mal dormida de uma viagem”. A definição do enredo dá lugar à experimentação sem precedentes: obra metalinguística, questiona a possibilidade de um amplo e coeso monumento poético da modernidade.
Oscilando entre os gêneros épico e lírico, seus 11 mil versos dividem-se em dez cantos, em alusão a Os Lusíadas (1572), de Luís de Camões (1524-1580). As referências à epopeia fundadora da língua portuguesa – a que se juntam a Odisseia, do poeta grego Homero, Eneida, do poeta romano Virgílio (70 a.C.-19 a.C.), e A Divina Comédia (ca.1308-1321), do italiano Dante Alighieri (1265-1321), além da própria Bíblia – respondem pelo desejo de encontrar alguma coesão. No entanto, o eu lírico vê-se impossibilitado de associar esses textos à experiência contemporânea. A retomada da tradição literária não basta para lhe garantir unidade formal ou temática.
Invenção de Orfeu é o último livro que Jorge de Lima publicou em vida. Nessa obra, o autor combina o catolicismo, o elemento onírico e o surrealismo. É o documento literário da natureza barroca do Brasil. A obra não nasceu na planificação da brasilidade; por isso mesmo, na sua força caótica e dispersa, é uma poderosa imagem deste país afro-europeu que carreia uma antiga cultura para enriquecer suas nascentes bárbaras.
O texto de Invenção de Orfeu é extremamente complexo e erudito. Apresenta diversas técnicas e faturas: poesias metrificadas e rimadas, outras em metro livre e verso branco, sonetos, canções, baladas, poemas épicos, líricos, poesias de carne e de sangue, poesias de infância, episódios surrealistas, esboços de dramas e de farsas. Propõe uma espécie de teodisseia (= odisseia para Deus) centrada na busca, pelo homem, de uma plenitude sensível e espiritual. ressalta a complexidade do estilo vazado em um imenso leque de metros, ritmos e estrofes e em formas de difícil elaboração: oitavas clássicas, tercetos, sextinas etc.
Poema épico e subjetivo, longo em dez cantos fragmentários, Invenção de Orfeu une fragmentos de epopeias clássicas, como mencionado anteriormente, a elementos sociais nacionais. O autor constrói uma epopeia moderna e brasileira ao criar uma viagem na qual se depara com o Inferno, o Paraíso e algumas musas.
O próprio poeta nos revela seus propósitos, na introdução do poema:
“Eu pretendi com este livro, que é um poema só, único, dividido em 10 cantos, fazer a modernização da epopeia. Uma epopeia moderna não teria mais um conteúdo novelesco. Não dependeria mais de uma história geográfica, nem, dos modelos, clássicos da epopeia. Verifiquei, depois da obra pronta e escrita, que quase inconscientemente, devido à minha entrega completa ao poema, que não só o Tempo como o Espaço estavam ausentes deste meu longo poema e que eu tinha assentado as suas fundações nas tradições gratas a uma epopeia brasileira, principalmente, as tradições remotamente lusas e camonianas.”
Jorge de Lima morreu em 1953, aos 60 anos, deixando como legado uma das obras mais impressionantes de toda a literatura brasileira. Nem sempre lembrado com o seu devido valor, Jorge de Lima é considerado pela crítica especializada um dos maiores poetas brasileiros do século XX:
“A personalidade literária e artística das mais múltiplas que o Brasil já viu.” (Otto Maria Carpeaux)
“(…) não tem paralelo na literatura brasileira.” (Revista Bravo!)
“A obra de Jorge de Lima permanece robusta e poderosa como um penhasco na solidão incomparável de seu gênio.” (Marco Lucchesi)
Obra literária de Jorge de Lima:
Poesia:
- XIV Alexandrinos (1914);
- O Mundo do Menino Impossível (1925);
- Poemas (1927);
- Novos Poemas (1929);
- O Acendedor de lampiões (1932);
- Tempo e Eternidade (1935);
- A Túnica Inconsútil (1938);
- Anunciação e encontro de Mira-Celi (1943);
- Poemas Negros (1947);
- Livro de Sonetos (1949);
- Obra Poética (1950);
- Invenção de Orfeu (1952);
- Antologia Poética (1962).
Romances
- O anjo (1934);
- Calunga (1935);
- A mulher obscura (1939);
- Guerra dentro do beco (1950).
Questões sobre Jorge de Lima
Questão 1 (Enem-2016)
Maria Diamba
Para não apanhar mais
falou que sabia fazer bolos:
virou cozinha.
Foi outras coisas para que tinha jeito.
Não falou mais:
Viram que sabia fazer tudo,
até molecas para a Casa-Grande.
Depois falou só,
só diante da ventania
que ainda vem do Sudão;
falou que queria fugir
dos senhores e das judiarias deste mundo
para o sumidouro.
LIMA, J. Poemas negros. Rio de Janeiro: Record, 2007.
O poema de Jorge de Lima sintetiza o percurso de vida de Maria Diamba e sua reação ao sistema opressivo da escravidão. A resistência dessa figura feminina é assinalada no texto pela relação que se faz entre:
a) o uso da fala e o desejo de decidir o próprio destino.
b) a exploração sexual e a geração de novas escravas.
c) a prática na cozinha e a intenção de ascender socialmente.
d) o prazer de sentir os ventos e a esperança de voltar a África.
e) o medo da morte e a vontade de fugir da violência dos brancos.
Resposta correta: a.
Questão 2 (FEI-2009)
O acendedor de lampiões
(Jorge de Lima)
Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Este mesmo que vem infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar-se à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente!
Um, dois, três lampiões, acende e continua
Outros mais a acender imperturbavelmente,
À medida que a noite aos poucos se acentua
E a palidez da lua apenas se pressente.
Triste ironia atroz que o senso humano irrita: —
Ele que doira a noite e ilumina a cidade,
Talvez não tenha luz na choupana em que habita.
Tanta gente também nos outros insinua
Crenças, religiões, amor, felicidade,
Como este acendedor de lampiões da rua!
Leia atentamente as afirmações abaixo e depois assinale a alternativa correta:
I. O poema se desenvolve a partir da oposição entre dois temas: a injustiça social, representada pela pobreza do acendedor de lampiões, e a falsidade de crenças e ideais propostos à sociedade.
II. O poema apresenta um único tema, o da injustiça social, ao qual todas as imagens apresentadas ao longo do texto se subordinam.
III. O poema se desenvolve a partir da comparação entre dois temas distintos, mas complementares: o da contraditória situação vivida pelo acendedor de lampiões, e o da falsidade de crenças e ideais propostos à sociedade.
a) apenas a afirmação I é verdadeira.
b) apenas a afirmação II é verdadeira.
c) apenas a afirmação III é verdadeira.
d) apenas a afirmação I é falsa.
e) apenas a afirmação II é falsa.
Resposta correta: c.
Questão 3 (FEI-2009)
A terceira estrofe do poema contido na questão anterior evidencia:
a) o olhar cético do eu lírico.
b) a perspectiva otimista do eu lírico.
c) o pessimismo agônico do eu lírico.
d) a perspectiva crítica do eu lírico.
e) a fé cristã do eu lírico.
Resposta correta: d.